sábado, 18 de junho de 2011

Texto livre: ÚLTIMO CAPÍTULO

Último Capítulo
Conto Fantástico com raizes caipiras

Sentada estou sobre o telhado de uma casa. Meu relógio marca quatro horas e catorze minutos de muita espera. A minha volta existe um grande cajueiro e uma linda represa que sacia a sede dos animais sertanejos, homens e bovinos. No reflexo das águas me vejo: aparentemente uma menina de olhos amendoados, de cor azul celeste; pele clara e rosto meigo. Contudo, sou mais velha que o mundo. Fui criada junto ao universo.

No aterro da grande represa, caminha um velho senhor. Cabelos brancos e coluna corcunda que ainda assim suavizam seus 90 anos. Criado à manteiga de porcos e longe de transgênicos, o velho, de nome desnecessário, leva consigo uma vara de pesca e isca de minhocas, retiradas da horta que ele mesmo cultiva.

Nasci especial. Para muitos sou uma aberração, para outros, indispensável. Consigo enxergar a expectativa de vida das pessoas, plantas e animais. Todo o tempo em contagem regressiva. De minhas mãos, pequenas e sedosas, saem linhas feitas de filamentos de alma, a qual posso conectar em todos os seres vivos.

O velho, aparentemente, não possui nenhuma doença. Poucos sabem – sua esposa, seus 13 filhos e 37 netos – que ele sofre de doença de chagas. E ninguém sabe, ninguém vivo nesse mundo, que desde quando nascemos, filamentos de alma vão se corroendo, diminuindo com passar do tempo. Até a temida partida.

Sou onipresente. A onisciência e a onipotência são adjetivos não cometidos a mim, só a superiores. O nonagenário isca o anzol com uma minhoca e o lança, preso à linha da vara para dentro da represa. Um, dois, três, quatro puxões e o peixe é fisgado: Traíra.

Quatro horas, catorze minutos e dois segundos. Sim! Meu tempo passa mais lento que todo o resto. Sou viva, também morrerei um dia, porém só Deus sabe. A única expectativa de vida a qual não consigo ver é a minha. Não sou de toda invisível, posso ser vista, mas somente em momentos especiais.

Alguns acham que sou feia, que sou negra, ou que uso capuz. Talvez um dia, quem sabe, eu ainda me utilize de mão armada, objeto perfuro-cortante. Não entendem eles que tudo na vida é necessário, que o sofrimento de alguns é indispensável para o equilíbrio de outros e do mundo.

Faço sair de minhas mãos uma linda linha, de cor rosa. Faço-a ir em direção ao velho que retira um peixe do anzol. Ele se vira e me vê. Parece assustado vendo uma menina ajoelhada sobre o telhado de sua casa. Até tenta falar, mas já é tarde.

Ao conectar minha linha à última linha dele o velho agoniza de dor. Seu coração já começa a parar. Falta ar nos pulmões. O cérebro já começa a se instabilizar. As pernas fraquejam. As cordas vocais dão seu último grito. O velho cai ao chão e derruba sua última traíra. Para os sertanejos, o velho morreu “derrepente”, para os legistas, infarto agudo do miocárdio. Que sua alma descanse em paz. Aqui jaz mais um velho. Para os pouco atentos, prazer, me chamam de Morte.

Alvaro Felipe Barbosa Sales
Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Medicina (FM/UFG)
Acadêmicos da Turma LIX

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